domingo, 1 de março de 2015

Do que a noite me traz



Desce o ocaso devagarinho
E os terrores que me assolaram
a noite passada retornam
aos poucos, com o peso
de chumbo das nuvens cinzas lá no alto.
Ainda está aqui o inchaço dos olhos em febre.
E o medo de encarar tudo de novo
É grande como um monstro debaixo da cama.

Dos meus olhos avizinha-se
a ardência que antecede a lágrima
pesada como os terrores e o chumbo das nuvens.
Será uma noite longa,
será fria a chuva,
a tempestade abafará o soluço do pranto.
A batalha queimará em meu peito
como a chama do desespero.

Lutarei com um inimigo que não sei
de onde veio, por que veio
tampouco por quanto tempo ficará.

Depois a manhã há de vir,
espantando os vampiros da madrugada,
enquanto eu olho para o teto
que não me diz nada,
mas reflete minha letargia.

Enxugarei as lágrimas do canto dos olhos,
piscarei lentamente os olhos ardentes,
arrumarei a bagunça deixada pelo quarto
com a luta travada.

E rezarei para que a noite se demore...

Angústia de Orfeu



 
Eis o Orfeu que desceu aos infernos,
mas não pode trazer sua Eurídice pela mão.
O amor foi-lhe tirado
como o golpe de um soco
Faltará o ar pelo resto da vida.

Os objetos de Eurídice ainda ocupam
todos os espaços da choupana.
Roupas, brincos, lenços e perfumes.

Tocará a lira mais dolorida
que os campos já ouviram.
Não haverá folha verde que não mingue
à voz embargada do poeta perdido.

Andará agora como bússola sem norte,
cujo ponteiro se perdeu
dentro do próprio eixo.
E vagará, simplesmente.

Porque não há mais caminho,
não há mais direção,
não há mais lugar,
não há mais ele próprio.



 

  


Epitáfio a mim mesmo


(depois de vencida a mulher)


Matou-me a mulher prática
Venceu a todos,
venceu a mim.

Eis que me prostro aqui,
ao lado do jazigo da minha mulher vencida.
Não há mais luar, não há mais música.
Acabou-se o sentimento.

Tomo duas flores ainda frescas
do buquê oferecido à mulher vencida,
para dar uma última graça
a meus olhos vencidos que se vão fechando.

E é quando me cerro para o infinito,
que brota uma gota de orvalho
na rosa amarela,
mas essa gota talvez seja uma lágrima,
lembrança mesmo do que vai ficando,
lembrança mesmo do que vai partindo...