sexta-feira, 20 de abril de 2012

Crônica da caneta

Às vezes paramos um pouco e começamos
a nos questionar sobre alguns acontecimentos em nossas vidas
Umas vezes chegamos às respostas, outras não
Continua a eterna indagação:
- Por quê?
Aconteceu, por exemplo, comigo, veja-se:

Certa vez ganhei uma caneta
Ah, que delícia!
Sim, o prazer era tão grande em tê-la:
seu revestimento maciço, cor de vinho,
detalhes pratas, um pequeno ganchinho na lateral
- era todo um charme este ganchinho -,
apoio emborrachado para os dedos,
ponta precisa, macia,
uma delícia!
Não desgrudava um instante dela,
queria-a para mim, escrevia febrilmente,
às vezes, quando a esquecia em casa,
meu Deus, que tempo que não passava!
Chegava, mal jogava a pasta sobre o birô e lá ela!
Mesmo que naquele dia eu não escrevesse nada,
mas era bom só segurá-la, tê-la!

Mas o tempo foi passando
e um dia, senti sua escrita,
antes tão firme, desvanecer...
tornou-se rachada,
com espaços em branco na tinta preta que saía da ponta elegante.
Para meu pesar, tudo só piorou:
os espaços aumentaram até sua escrita tornar-se difícil e dura

Não houve jeito. Sua tinta acabara
Não podia mais estar comigo como dantes
Não podia mais dar-me o prazer de sua escrita
Não podia mais dialogar comigo
Fechou-se para mim

No entanto, meu amor por aquela caneta
era tão incomensurável que resolvi mantê-la ali diante de mim
no seu cantinho de sempre, dentro de um porta-canetas todo aveludado por dentro
e todo talhado por fora
Ela era a única que ocupava aquele depósito
Permanecia lá: intocável, amada, respeitada, idolatrada
não só pelos outros materiais de escritório, como por mim
- aliás, acho que os outros materiais mais tinham inveja que respeito –
Mas eu não: amava-a acima de qualquer outra coisa...

Por várias vezes ainda tentei fazê-la riscar:
era como um desejo de que, numa espécie de milagre,
ela voltasse a falar comigo, voltasse a responder aos meus anseios,
que voltasse à minha presença
Mas foram em vão essas tentativas...

Contudo, certa vez, ao chegar ao escritório,
Percebi sobre os papeis, um risco familiar,
- mais que familiar, até -,
era um risco bonito, preciso, macio
era ela, ela!
Sim, ela voltara a viver, era sua mensagem a mim!
Imediatamente tomei-a entre os dedos
e escolhi o melhor papel que havia, o mais branquinho,
cheirando ainda à goma,
e, com o suor na mão, o coração em pulos e os pulsos apoiados na mesa
atritei sua ponta no papel e deslizei com ela...
 
Mas a escrita estava dura.
Não queria seguir.
Não havia tinta no papel.
A caneta não escrevia.
Desisti, desolado.
 
Seguiram-se dias e,
vez ou outra,
encontrava um papel riscado
com a mesma tinta,
sempre o mesmo risco.

Eu sabia que era ela
E, com o tempo, compreendi que,
por algum motivo,
talvez para sempre incompreendido,
ela não queria mais escrever entre meus dedos,
podia viver sem mim,
estava até feliz
- outro dia encontrei uma anedota escrita por ela –

Só me restou o questionamento:
- Por quê?

Depois tirei a caneta ingrata do portador aveludado
e juntei-a aos lápis dentro do estojo comum.

Hoje escrevo no computador
porque é mais impessoal, mais frio,
se eu não gostar, deleto.
Nem ficam marcas ou borradeiras de corretivo.
Também evito o contratempo de parar bem no ápice da
                          [ideia para fazer a ponta do lápis, que quebrou!


Mas ainda hoje me pergunto
- e olha que já faz tempo o episódio da caneta -:
- Por que mesmo?

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