terça-feira, 21 de abril de 2015

FLORILOBA



 
Teu corpo é como a água,
Que escorre pela minha rocha
E toca suave as algas negras
Presas à pedra.
E enquanto tu deslizas em mim,
Feres a encosta do monte que sou
E fissuras com as garras de uma loba
A superfície antes em repouso.
Na sede de morrer de viver,
Sangras-me a terra
E bebes meu sangue,
E bebes minha seiva.

Teu corpo aqui não é mais água,
É flor odorífica,
Que exala sobre a montanha
O seu perfume cítrico.
Quando se abre
Às minhas manhãs,
Recebe o meu sol em seta,
E a minha chuva ardente,
E a carícia de meus suaves ventos
No contorno das pétalas.

Fertilizo-te, oh flor com garras de loba!
Dou à tua raiz os meus nutrientes,
Enquanto tu te entregas ao meu sol,
Vibrando trêmula teu frágil caule,
Abrindo em pétalas um sorriso nervoso
E abandonando-se no êxtase final,
Depois de uivar e tombar
sobre o meu chão firme em sangra,
revolto pelas tuas unhas ferozes.

domingo, 1 de março de 2015

Do que a noite me traz



Desce o ocaso devagarinho
E os terrores que me assolaram
a noite passada retornam
aos poucos, com o peso
de chumbo das nuvens cinzas lá no alto.
Ainda está aqui o inchaço dos olhos em febre.
E o medo de encarar tudo de novo
É grande como um monstro debaixo da cama.

Dos meus olhos avizinha-se
a ardência que antecede a lágrima
pesada como os terrores e o chumbo das nuvens.
Será uma noite longa,
será fria a chuva,
a tempestade abafará o soluço do pranto.
A batalha queimará em meu peito
como a chama do desespero.

Lutarei com um inimigo que não sei
de onde veio, por que veio
tampouco por quanto tempo ficará.

Depois a manhã há de vir,
espantando os vampiros da madrugada,
enquanto eu olho para o teto
que não me diz nada,
mas reflete minha letargia.

Enxugarei as lágrimas do canto dos olhos,
piscarei lentamente os olhos ardentes,
arrumarei a bagunça deixada pelo quarto
com a luta travada.

E rezarei para que a noite se demore...

Angústia de Orfeu



 
Eis o Orfeu que desceu aos infernos,
mas não pode trazer sua Eurídice pela mão.
O amor foi-lhe tirado
como o golpe de um soco
Faltará o ar pelo resto da vida.

Os objetos de Eurídice ainda ocupam
todos os espaços da choupana.
Roupas, brincos, lenços e perfumes.

Tocará a lira mais dolorida
que os campos já ouviram.
Não haverá folha verde que não mingue
à voz embargada do poeta perdido.

Andará agora como bússola sem norte,
cujo ponteiro se perdeu
dentro do próprio eixo.
E vagará, simplesmente.

Porque não há mais caminho,
não há mais direção,
não há mais lugar,
não há mais ele próprio.



 

  


Epitáfio a mim mesmo


(depois de vencida a mulher)


Matou-me a mulher prática
Venceu a todos,
venceu a mim.

Eis que me prostro aqui,
ao lado do jazigo da minha mulher vencida.
Não há mais luar, não há mais música.
Acabou-se o sentimento.

Tomo duas flores ainda frescas
do buquê oferecido à mulher vencida,
para dar uma última graça
a meus olhos vencidos que se vão fechando.

E é quando me cerro para o infinito,
que brota uma gota de orvalho
na rosa amarela,
mas essa gota talvez seja uma lágrima,
lembrança mesmo do que vai ficando,
lembrança mesmo do que vai partindo...


sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Último ato





Surgem como um ronco quente
Do deserto em silêncio,
Olhos por detrás das lentes
Dos rifles em preto lenço.

Aparecem na montanha
Outros olhos sanguinários.
Com as mentes em louca chama,
Vão descendo em grupos vários.

Choque forte, fundo, brusco.
Ronca em dores o deserto.
E a montanha, sob chumbo,
Sangra e chora neste inferno.

Não há mais homens no mundo,
Foi a grande estupidez.
Guerra! Nos levou ao fundo
Por terceira e última vez.